Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7/18.1GAORQ.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
LEGITIMIDADE DA ASSISTENTE
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO EM JULGAMENTO
MEDIDA DA PENA
PENA DE PRISÃO EFECTIVA
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDOS EM PARTE OS RECURSOS
Sumário:
I – A assistente tem legitimidade para questionar a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido na instância recorrida, se demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.

II – Sendo o sistema do Código de Processo Penal de acusatório impuro ou de acusatório mitigado por um princípio da investigação (oficiosa, pelo juiz - artigo 340.º, nº1, do CPP) de modo a viabilizar, nos limites do possível (com a salvaguarda das garantias de defesa), a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa, o juiz pode intervir excepcionalmente na narrativa dos factos da acusação, reformatando-os ou mesmo acrescentando-os. Essa reconformação da acusação, quando de uma real alteração de factos se trate (real alteração no sentido de dela resultarem consequências de direito), opera-se por via dos mecanismos previstos nos arts 358.º e 359.º do CPP.

III – Assim, cumprido o disposto no n.º1 do artigo 358.º do CPP podem ser aditados à sentença factos ocorridos após o início do julgamento, não essenciais à afirmação da tipicidade mas com relevância para a determinação da medida da pena, pois a lei manda atender à conduta posterior ao facto.

IV - O juízo sobre a pena envolve a identificação casuística das exigências de prevenção especial, à qual não pode ser alheia a avaliação dos resultados das condenações anteriores no comportamento do condenado. Ou seja, em casos de arguidos não primários, cumpre saber das concretas sanções criminais anteriormente experimentadas, aquilatar do seu maior ou menor sucesso, da resposta que ainda possam oferecer para o caso concreto, sobretudo quando a nova pena a proferir é a de prisão.

V - E sendo a sentença penal uma peça processual “auto-suficiente”, tem de dispensar remissões ou consultas de outras folhas do processo para a sua integral compreensão.

VI - Todo o comportamento do arguido persecutório da vítima, as ameaças de morte que verbalizou ao longo do tempo, mesmo após aplicação judicial de medida de proibição de contactos com a vítima, a problemática do seu alcoolismo e antecedentes criminais, elevam as exigências de prevenção especial e apontam no sentido da insuficiência da substituição da pena de prisão.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo n.º 7/18.1GAORQ, da Comarca de Beja (Almodôvar), foi proferida sentença a condenar o arguido RR como autor de um crime de violência doméstica agravada do art. 152º, nº 1 als. b-) e c-) e n° 2 do CP, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na execução pelo período de 4 anos, nas seguintes condições: - sujeição do arguido a tratamento contra o alcoolismo o arguido fazer tratamento contra o consumo de álcool, acompanhado de apoio psicológico para o qual o arguido já deu o seu consentimento (em audiência de julgamento); - proibição de uso e porte de arma durante 4 anos; - pagamento pelo demandado à demandante da indemnização no valor de 5.500,00 euros; - proibição de contactos com a ofendida, AA, presenciais e telefónicos (voz e escrita), mediante vigilância eletrónica, por 6 meses, com aparelhos que funcionem bem, devendo os atuais serem substituídos pela entidade competente.

Foi ainda julgado procedente o pedido de indemnização civil, no valor de 5.500,00 euros (cinco mil e quinhentos euros), deduzido pela assistente/demandante AA

Inconformados com o decidido, recorreram o arguido e a assistente, concluindo:

O arguido
“I. A Douta Sentença proferida encontra-se ferida de nulidade insanável, uma vez que condenou o Arguido com base em factos que ocorreram após o limite temporal fixado pela acusação.

II. O presente processo teve acusação proferida em 18 de Maio de 2018, e relata factos alegadamente praticados pelo Arguido, desde data não concretamente apurada e até 20 de Janeiro de 2018.

III. O Recorrente veio a ser condenado, também, por factos alegadamente ocorridos a 11 de Novembro de 2018.

IV. O nosso processo penal tem estrutura acusatória, integrada no princípio da verdade material, conforme Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015.

V. O princípio da investigação da verdade material tem de ser exercido nos limites traçados na acusação ou na pronúncia.

VI. A actividade cognitiva e decisória do Tribunal está estritamente limitada pelo limite temporal constante da acusação.

VII. O Tribunal a quo deveria ter-se abstido de, em sede do presente processo, analisar factos que ocorreram após o limite temporal fixado na acusação, e que eram objectivamente supervenientes.

VIII. Ao não fazê-lo, e ao dar como provados os factos elencados como 25. e 28., a Douta Sentença ficou ferida de nulidade insanável.

IX. Ainda que se considere que todos os factos dados como provados o foram de forma processual e legalmente válida, sempre a decisão deveria ter sido a da absolvição do Recorrente.

X. Na verdade, está em causa uma relação conjugal entre o Recorrente e a Demandante que durou cerca de 11 anos, pautada pela baixa escolaridade de ambos e o consumo de álcool originava discussões entre o casal, e no âmbito das quais o Recorrente proferiria as expressões constantes da Douta Sentença.

XI. A Douta Sentença refere genericamente que as situações ocorreram várias vezes, sem concretizar a frequência com que as mesmas aconteciam, dando apenas como provadas quatro circunstâncias que resultaram minimamente concretizadas factual ou temporalmente.

XII. Ou seja, durante 11 anos, o que existiu foi uma relação conjugal marcada por discussões e excesso de consumo de álcool, num ambiente de alguma miséria moral e de princípios.

XIII. A própria ofendida diz, sem margem para dúvidas, que o Recorrente é um bom homem e marido, mas que se altera quando bebe.

XIV. Ora, de todo o depoimento da Ofendida, bem como das demais testemunhas ouvidas, não resulta que a conduta do Recorrente se tenha revestido de uma especial gravidade, com desrespeito pela dignidade da sua companheira.

XV.Dos factos dados como provados nos presentes autos não se pode retirar o preenchimento do crime de violência doméstica, pois não resultaram provados quaisquer atos violentos que, pela sua imagem global e pela sua gravidade, devam ser tidos como desrespeitadores da pessoa da vítima, ou do desejo de prevalência e de dominação sobre a mesma, e, logo, suscetíveis de serem classificados como maus tratos.

XVI. Os factos considerados como provados, quer os pouco verdadeiramente concretizados, quer os outros que não o foram, não integram maus tratos, e, consequentemente, não podem ser integradores do tipo de crime de violência doméstica.

XVII. Apesar de todo o alarme social, diga-se fundamentado, sobre situações de violência doméstica, não podem os Tribunais incorrer no fácil erro de considerar todos os desentendimentos, faltas de educação ou de idoneidade moral ou comportamental como violência doméstica.

XVIII. Os factos que preenchem o tipo de crime de violência doméstica têm que ser classificados como maus tratos, não podendo as relações ser analisadas por um modelo padrão e socialmente adequado, mas concretamente o que realmente são, com os seus integrantes e as suas condições humanas, sociais e morais.

XIX. No caso em concreto, considera-se que não se verificam os pressupostos ou requisitos da prática, em autoria material, por parte do Arguido, de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, pelo que deveria o mesmo ter sido absolvido.

XX. Ainda que assim não se entenda, e se considere que os factos dados como provados consubstanciam a prática por parte do Recorrente do crime de violência doméstica de que estava acusado, tendo em conta os factos provados, os seus antecedentes criminais, e ainda a moldura penal do crime em causa, considera-se que a pena concretamente aplicada mostra-se, e salvo o devido respeito, manifestamente desadequada e desproporcional.

XXI. A fixação duma pena de prisão no mínimo legal, suspensa por igual período, suspensão essa sujeita, quanto muito, à frequência de tratamento do consumo de álcool, seria a decisão adequada à situação em concreto.

XXII. Por outro lado, e finalmente, a indemnização cível que o Recorrente foi condenado a pagar, e considerando os danos provados, também se mostra exagerada e desproporcional.

XXIII. Os factos dados como provados referentes ao pedido de indemnização são meramente conclusivos, não assentando em factos concretos.

XXIV. Nem os factos manifestam gravidade tal que mereçam uma indemnização de 5.500,00€.

XXV. A sentença recorrida violou, assim o disposto nos artigos 152.º, n.º 1 al. a) e n.º 2, al. a), artigo 40.º, 50.º, 51.º, 52.º, 53.º, 70.º e 71.º todos do Código Penal, e ainda o artigo 359.º do Código de Processo Penal.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V.as Ex.as Doutamente suprirão, deverá:

- a Douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que não dê como provados factos ocorridos após o despacho acusatório, e, a fim, absolva o Recorrente do crime de violência doméstica do qual vem acusado; ou caso assim não se entenda,

- a Douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que fixe a pena de prisão a aplicar ao Recorrente no mínimo legal, suspendendo a mesma por igual período, reduzindo ainda o montante indemnizatório a uma quantia adequada aos danos sofridos pela Demandante, assim se fazendo a costumada.”

A assistente
“1- Vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal a “a quo”, aqui dada por integralmente reproduzida, na qual foi decidido ( VI- Dispositivo) :

“a) condenar o arguido pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão;

b) suspender a execução da referida pelo período de 4 anos, ao abrigo do disposto no art. 50.º n.º 5, do Código Penal, nas seguintes condições ( art. 50.º n.º 3 , 51.º n.º 1 e 152.º n.º 4, parte final do CP);

2-A Recorrente não coloca em causa a decisão proferida sobre a matéria de facto julgada assente e provada pelo Tribunal a quo.

3- O objecto do recurso versa unicamente a apreciação da seguinte questão:

A suspensão da execução da pena de 4 anos de prisão, por se entender que o Tribunal a quo procedeu a uma incorrecta e imprecisa interpretação e aplicação do disposto no art. 50.º do Código Penal.

4-Considerando-se, assim, que o direito não foi corretamente aplicado no que concerne à suspensão da execução da pena,

5-O art. 50.º, n.º1 do Código Penal, enuncia os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão e nos termos deste preceito legal:

“O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

6- O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão impõe que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos, o que, in casu se verifica.

Não obstante,
7- O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o tribunal, tendo em conta a personalidade do arguido e as circunstâncias do facto, conclua que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição,

8- Constituindo assim, pressuposto básico da aplicação da pena de substituição, a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro.

9- O Tribunal deve, pois, estar plenamente convencido de que a censura inserta na condenação, bem como a ameaça de execução da pena de prisão sejam suficientes para que o arguido se abstenha de adoptar condutas que possam determinar a efectivação dessa mesma pena.

10-No caso concreto, tal não se verifica, porquanto, o arguido:

a) Manteve uma postura de negação dos factos ao longo de todo o julgamento não interiorizando minimamente o desvalor da conduta, sustentando um discurso desculpabilizante em relação à sua pessoa;

b) Afirmou que 98% dos factos que constam da acusação não correspondiam à verdade, não confessando os factos;

c) Ao longo de todas as suas declarações, bem como no decurso da audiência de julgamento, não verbalizou nem manifestou qualquer gesto de arrependimento pela sua conduta;

d) O facto de frequentemente estar sob o efeito de bebidas alcoólicas constitui um factor de risco a ter seriamente em conta;

e) No decurso do julgamento, mais precisamente no dia 11 de Novembro de 2018, enviou à Assistente, entre outras, a seguinte mensagem via telemóvel:

não queres ouvir as verdades… eu gosto de ti, anda com quem tu quiseres, com quem não gosta de ti, logo hás-de ver. Vai lá à do L, vai buscar a lenha a quem diz mal de mim, se não morrer até quarta-feira vão-se ver negros, porque vocês vão pagar tudo e mais alguma coisa, têm que pagar por tudo…eu quando faço o almoço faço-te com carinho e com vontade…vou ali buscar uma espingarda para te matar… com a camada de droga que ele tem em cima dos cornos vocês vão ver...”;

f) Ameaçou igualmente a filha da Assistente, o ex-namorado da filha e o Sr., proprietário do café onde a Assistente trabalha (o L).

g) Não obstante as proibições que sobre si impendem não se tem coibido de se aproximar da vitima, em diversas ocasiões, perfeitamente ciente do carácter proibido de tal conduta entrando no seu perímetro de segurança, amedrontando-a e fazendo-a temer, particularmente, pela sua vida e pela vida da sua filha;

11-O arguido, para além de desrespeitar frequentemente as proibições que sobre si impendiam, sem que nada lhe acontecesse, ainda continuou a ameaçar a vítima, no período em que decorria o julgamento.
Desta forma,

12-Sendo verdade que a prisão, por si só, não vai reinserir o agressor, também é verdade que a vítima vai estar à sua completa mercê.

13-Aceitando-se, ainda, que apenas a educação e formação cívica podem alterar os comportamentos criminosos dos agressores, deve ter-se em linha de conta que esse processo é moroso,

14-porque se trata de reverter uma mentalidade ancestral, sexista, desvalorizadora das mulheres, que se encontra profundamente enraizada na cultura e nas mentes.

15-Até à inversão dessa mentalidade corrente, há que assegurar a protecção das vítimas punindo-se os agressores com as características supra descritas, com pena efectiva de prisão como única alternativa.

16-O direito penal poderá até não ser a solução final ou ideal para acabar com a violência doméstica mas é o único meio actual de proteger as vítimas dos instintos criminosos dos agressores.

17-E esta pena efectiva terá em vista, em primeira linha, a protecção da vítima.

18- Não partilhamos uma visão redutora e simplista da questão, mas na prática trata-se de escolher entre a liberdade do arguido e a protecção da vítima que continua a viver sob as suas ameaças e em clima permanente de medo. Destarte,

19-A suspensão da execução da pena enquanto poder vinculado do julgador, não poderá ser, in casu, decretada por não se verificarem os respectivos pressupostos.

20-Os factos praticados pelo arguido são de elevado grau de ilicitude, determinando que a Assistente tema pela sua vida, pela vida da sua filha, bem como de terceiras pessoas próximas de si.

21-O arguido não admitiu os factos nem revelou qualquer arrependimento, revelando não ter interiorizado o desvalor e a gravidade da sua conduta.

22-As exigências de prevenção geral e de prevenção especial, são muito elevadas.

23-A personalidade do arguido expressa nos factos, o não reconhecimento dos mesmos, o elevado grau de ilicitude dos mesmos a intensidade do dolo directo, a reiteração de condutas, a inexistência de arrependimento, as suas condições pessoais, (…de onde se destaca o seu problema de alcoolismo), a sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, são factores que não permitem concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

24-Sopesando todos esta factualidade não se vislumbra, portanto, como a suspensão da execução da pena possa, futuramente, evitar a repetição de comportamentos delituosos pelo arguido, ainda que se sujeite a suspensão a regime de prova.

25-Daí que se possa inferir que o Tribunal não pode fazer um juízo de prognose favorável de que o arguido não irá cometer novos ilícitos criminais contra a vítima;

26- Em consequência, entendemos que a sentença recorrida deverá ser revogada e o presente recurso ser declarado procedente impondo-se a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos presentes autos, devendo o arguido cumprir pena efectiva de prisão.”

O Ministério Público respondeu aos dois recursos, concluindo:

No recurso do arguido
“1. O arguido RR, inconformado com a douta sentença proferida a fls. 403 e seguintes que o condenou pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução, veio dela interpor recurso.

2. A Motivação apresentada pelo Recorrente e respectivas Conclusões (consabidamente delimitadoras do objecto do recurso) avançam com a douta sentença proferida encontra-se ferida de uma nulidade insanável, uma vez que condenou o Arguido com base em factos ocorridos após o limite temporal fixado pela acusação... a sentença recorrida violou o artigo 359º do Código Penal, os factos considerados como provados, quer os pouco verdadeiramente concretizados, quer os outros que não o foram, não integram maus tratos e, consequentemente, não podem ser integradores do tipo de crime de violência doméstica e a pena concretamente aplicada mostra-se, e salvo o devido respeito, manifestamente desadequada e desproporcional ... A sentença recorrida violou, assim, o disposto no artigo 40.9, 50.9, 51.9,52.9,53.9,70.9 e 71.9 todos do Código Penal.

3. Um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença.

4. Os factos descritos na acusação definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição e decisão do Tribunal.

5. Os factos constantes dos pontos 25 e 28 da douta sentença recorrida são supervenientes do limite temporal do objecto do processo que havia sido fixado pela acusação, assim extravasando as condições do artigo 358.º do Código de Processo Penal.

6. Na verdade tais factos, salvo melhor opinião, representam uma verdadeira alteração substancial dos factos, na medida em que estamos perante um facto histórico novo.

7. Termos em que a sentença recorrida parece enfermar de nulidade, por violação das alíneas b) e c) do n.º 1, do artigo 379.º do Código de Processo Penal, mas circunscrita.

8. Expurgada a matéria de facto contida nos pontos 25 e 28, a restante factualidade dada como provada é suficiente para ser proferida uma decisão condenatória pela prática do crime de violência doméstica.

9. O Recorrente pretende impugnar o processo de formação da convicção do Tribunal que conduziu à fixação da matéria de facto, ao arrepio do princípio da livre apreciação da prova vertido no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

10.O Recorrente parece querer substituir-se ao julgador, apresentando a sua interpretação dos factos provados, procurando impor a sua leitura e apreciação da prova.

11. Não há razão ou fundamento para a absolvição.

12. Os factos provados (mesmo expurgando os dos pontos 25 e 28 preenchem os elementos típicos - objectivo e subjectivo - do crime de violência doméstica agravada.

13.O Recorrente não mostrou arrependimento e não interiorizou o desvalor e a gravidade da sua conduta, circunstâncias que têm de ser consideradas na medida concreta da pena.

14. Por essa razão, ao Recorrente não podia ter sido, e não pode ser, aplicada a pena mínima, porque manifestamente insuficiente. Como também se mostra insuficiente a regra de conduta por si sugerida.

15. Ponderadas a ilicitude global dos factos, a culpa do Recorrente e as elevadas exigências de prevenção (geral e especial) do caso concreto, ao abrigo do disposto nos artigos 40º, n. s 1 e 2 e 71.º, ambos do Código Penal, no limite poderia ser ponderada uma pena situada entre os 3 (três) e os 3 (três) anos e 6 (seis) meses, e não inferior, suspensa na sua execução, e desde que sujeita às exactas condições e regras de conduta que foram impostas na douta sentença recorrida.

16. Bem andou o Tribunal a quo ao concluir pela condenação nas penas acessórias e pela imposição ao Recorrente das condições e regras de conduta decididas, por só assim ser possível acompanhar o percurso do Arguido e avaliar, na prática, o juízo de prognose do Tribunal assente na convicção de que a mera censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição no caso concreto.”

No recurso da assistente
“- A condenação do arguido em penas acessórias e a imposição das condições e regras de conduta acima descritas vai ao encontro do fim das penas, permitindo acompanhar o seu percurso durante o prazo da suspensão, de forma a confirmar o juízo de prognose favorável feito pelo Tribunal a quo de que a mera censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, afastando aquele da actividade criminosa e pugnando pela sua conformação com as normais legais vigentes na sociedade na qual se encontra inserido.

- Termos em que, no caso concreto, decisão diversa da suspensão da execução da pena de prisão se revelaria desproporcional e, essa sim, violadora do disposto no artigo 50.º do Código Penal.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer, pronunciando-se sobre todas as questões suscitadas nos dois recursos e concluindo no sentido da reabertura da audiência com vista à supressão de nulidades que elencou, sem prejuízo de se dever conhecer desde já (e no sentido da improcedência) de uma das questões suscitadas pelo arguido (a relativa à efectiva tipicidade dos factos provados).

Não houve resposta ao parecer. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:

“l. RR e AA mantiveram uma relação análoga à dos cônjuges, com partilha de tecto, leito, e mesa, relação esta que se iniciou em 2007, e que cessou no dia 20.01.2018, residindo ambos à data no Largo …,em Castro Verde;

2. O arguido e a ofendida têm uma filha em comum, com 9 anos de idade, AM, que até à data da cessação da relação residia com ambos, residindo também consigo uma outra filha da vítima, LL, com 17 anos de idade;

3. RR consome habitualmente bebidas alcoólicas em excesso, circunstância que altera o seu estado anímico passando a adotar comportamentos violentos contra a vítima, na presença das suas filhas menores, e no interior da residência comum do casal;

4. A relação entre o casal foi sempre marcada por conflitos entre ambos, caracterizando-se ao longo dos anos por sucessivas separações e reconciliações;

5. Ao longo da sua relação também, o arguido sempre manifestou ciúmes e sentimento de posse em relação à vítima, imputando-lhe relacionamentos com outros homens;

6. Ao longo da relação entre ambos, em datas não apuradas, no interior da residência do casal e na presença da filha menor do casal, RR ameaçou recorrentemente a vítima de que lhe batia, chegando em tais ocasiões a levantar a mão na sua direção reforçando o medo e temor que provocava em AA;

7. Pelo menos numa dessas ocasiões, o arguido disse à vítima que lhe fazia o mesmo que o "Pepe" fez à mulher, ou seja, que a matava, referindo-se a um homicídio ocorrido há cerca de 5 anos em Castro Verde;

8. Nas inúmeras discussões iniciadas pelo arguido, em datas não apuradas mas sempre no interior da residência comum do casal, o arguido, desferiu empurrões à vítima, o que foi concretizado na presença pelo menos da filha de ambos, atualmente com 9 anos de idade;

9. Após tomar conhecimento do namoro de LL, filha apenas da vítima, e que reside com o casal, começou a dirigir-se a esta dizendo "qualquer dia emprenhas e eu não estou para sustentar o moço nem o pai, não ajudas a mãe, não fazes";

10. Habitualmente, e ao longo da sua relação com AA, o arguido dirigiu a AA comentários depreciativos, de teor não concretamente apurado, sobre as amizades desta levando a que a mesma se afastasse dos seus amigos por receio do comportamento do arguido de forma a evitar que o mesmo iniciasse novas discussões, inibindo dessa forma o arguido a vida social de AA;

11. Há cerca de 4 ou 5 anos, o arguido, com o intuito de amedrontar a vítima chegou a dormir com as armas de caça, que então possuía, sobre a cama, o que fazia com intenção de provocar medo e terror na vítima;

12. No dia em que as armas lhe foram apreendidas, em data que se desconhece, mas pelas 22h00, o arguido fechou-se em casa não permitindo a entrada da vítima, que teve de a arrombar para conseguir entrar;

13. Há cerca de 3 anos que, quando a vítima se ausenta de casa com as suas filhas, o arguido aproveita para revolver a casa toda e os pertences daquelas;

14. Há cerca de um ano que as discussões, com as características atrás descritas, se tornaram cada vez mais frequentes, assumindo desde então frequência praticamente diária, sempre no interior da residência comum do casal, com um interregno de, no máximo 2 dias;

15. No decorrer de tais discussões o arguido, com intenção de intimidar e amedrontar a vítima, pegava num machado com cerca de 30 cm de cabo e 8 cm de lâmina, que mostrava e brandia à frente da vítima, ao mesmo tempo que dizia "qualquer dia ... ";

16. Em data não concretamente apurada, mas há mais de 6 meses, quando ainda residiam em Almeirim, o arguido, que se encontrava alcoolizado, iniciou uma discussão com a vítima no interior da residência do casal, o que fez num tom de voz e comportamento agressivos, tendo-se dirigido àquela dizendo-lhe "qualquer dia arranco-te a cabeça", momento em que a vítima acabou por se refugiar no interior do seu quarto trancando a respetiva porta para impedir a entrada do arguido;

17. No passado dia 25.12.2017, dia de Natal, o arguido chegou uma vez mais a casa alcoolizado tendo iniciado nova discussão com a vítima, de teor não concretamente apurado, mas por causa da filha do casal e da filha da vítima, LL, que com eles residia;

18. Em consequência do desgaste psicológico provocado pelo comportamento do arguido e no contexto de nova discussão iniciada por aquele, AA, nesse mesmo dia 25.12.2017, tentou tirar a sua própria vida através da ingestão de medicamentos, tendo sido transportada para o Hospital de Beja para receber tratamento médico;

19. Mesmo quando se encontrava a ser transportada pelo INEM, o arguido não se coibiu de dirigir à ofendida expressões, não concretamente apuradas, mas de idêntico teor ofensivo às acima referidas;

20. No dia 20 de janeiro de 2018, mais uma vez o arguido chegou a casa fortemente embriagado e iniciou nova discussão no interior da residência, desta feita com LL, o que levou a vítima a interpor-se entre ambos;

21. Nesse momento, o arguido, na presença também da sua filha, com 9 anos de idade, dirigiu a AA as expressões "puta", "és uma porca", "não fazes nada", dizendo-lhe também que só ele trabalhava, referindo uma vez mais "qualquer dia faço-te o mesmo que o Pepe fez à mulher", ou seja, que a matava;

22. A vítima, pelo menos no último ano de vida em comum com o arguido, não trabalhava, vivendo exclusivamente dos rendimentos deste, encontrando-se assim financeiramente dependente do mesmo;

23. No dia 30.01.2018, o arguido foi submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, na sequência do qual lhe foram aplicadas, além de outras, a medida de coação de coação de proibição de contactos, por qualquer meio, com AA;

24. Não obstante, o arguido manteve os seus intentos e ausência de crítica para o seu comportamento insistindo em contactar telefonicamente AA, ligando-lhe por essa via várias vezes ao dia insistindo com a mesma para reatarem o seu relacionamento, o que faz bem sabendo não ser intenção daquela reatar qualquer relacionamento consigo e que contraria o desejo daquela em não ser por contactado, afetando dessa forma a paz, o sossego, e tranquilidade daquela;

25. No dia 11 de novembro de 2018, o arguido enviou, várias mensagens, via telemóvel, dizendo "não queres ouvir as verdades... eu gosto de ti, anda com quem tu quiseres, com quem não gosta de ti, logo hás de ver. Vai lá à do L, vai buscar a lenha a quem diz mal de mim, se não morrer até quarta-feira vão se ver negros, porque vocês vão pagar tudo e mais alguma coisa, têm de pagar por tudo... eu quando faço o almoço faço-te com carinho e com vontade ... vou ali buscar uma espingarda para te matar ... com a camada de droga que ele tem em cima dos cornos, vocês vão ver. .. ";

26. O arguido, sempre consciente, livre, deliberada, e voluntariamente, representou, quis, e atuou da forma descrita, no interior da residência do casal e na presença da filha menor de ambos, com o propósito concretizado de atingir a honra, a consideração, a integridade física, a saúde psicológica, e a liberdade de AA, fragilizando-a na sua relação de casal, e na sua dignidade pessoal;

27. Também o arguido, sempre consciente, livre, deliberada, e voluntariamente, representou, quis, e atuou da forma descrita, no interior da residência do casal e na presença da filha menor de ambos, de forma a provocar como provocou, medo e angústia em AA, fazendo-a temer pela sua vida e integridade física, bem sabendo também que ao assim atuar violava um especial dever de respeito para com a sua então companheira e mãe da sua filha, perturbando e prejudicando a consideração e amor-próprio daquela enquanto mulher, mãe, e companheira;

28. O arguido, no que respeita ao facto provado 25., agiu consciente, livre, deliberada e voluntariamente, quis provocar medo e angústia em AA, fazendo-a temer pela vida e integridade física de sua filha LL, e de temer pela vida e integridade física de MB, ex-namorado de LL e testemunhas no presente julgamento e, também, pela sua vida e integridade física, bem sabendo que ao assim atuar violava um especial dever de respeito para com a sua ex-companheira e mãe da sua filha, perturbando e prejudicando a consideração e amor-próprio daquela enquanto mulher, mãe e ex -companheira;

29. Em todos os momentos da sua atuação sabia o arguido que as suas condutas eram e são previstas e puníveis por lei penal, não se coibindo ainda assim de adotar aqueles comportamentos;

30.Teor do certificado do registo criminal do arguido;

31.O arguido é pedreiro e trabalha para empreiteiro de obras de construção civil de Castro Verde, auferindo 1.000,00 euros líquidos mensais;

32. O arguido tem o 9° ano de escolaridade;

33. Vive em casa de sua mãe;

34. A filha que tem em comum com AA reside com esta e o arguido paga pensão de alimentos mensal no valor de 250,00 euros;

35. Está separado da ofendida desde janeiro de 2018;

36. Sempre que o arguido atuou dirigindo-se a AA e a LL, na factualidade supra e constante da acusação, estava embriagado (antes tinha tomado bebidas alcoólicas em excesso);

37. O arguido foi caçador;

38. AA trabalhou, ao longo de sua vida, esporádica e sazonalmente na hotelaria na região do Algarve e na Câmara Municipal de Castro Verde;

39. AA tem 3 filhos, a menina em comum com o arguido, a LL e um rapaz meio- irmão das filhas raparigas;

40. A demandante receia que o demandado concretize as ameaças que proferiu, vivendo perturbada e com medo, receando pela sua própria vida;

41. A demandante ao longo dos anos em que viveu com o arguido e em consequência do comportamento deste, isolou-se das suas amizades, tornando-se uma pessoa triste e deprimida.”

Consignou-se a inexistência de factos não provados

E a fundamentação da matéria de facto foi a seguinte:
“O Tribunal gizou a sua convicção na ficha de avaliação de risco de fls. 22; no auto de apreensão do machado, de fls. 86 e 87; no relatório do Gabinete VERA, de fls, 119; e no auto de aditamento emitido pela GNR de Castro Verde, de fls. 369 a 371.

O arguido declarou que 98% do que consta da acusação não é verdade.

As suas declarações serviram, apenas, para prova das suas condições pessoais e económicas.

Os depoimentos das testemunhas e da assistente contribuíram para a prova dos factos da acusação e do pedido de indemnização civil.

As testemunhas, a sua filha LL e "enteada" do arguido, e o ex-namorado desta, MB.

LL, que sempre residiu com o arguido e sua mãe desde que começaram a viver juntos, disse que a mãe sempre foi ofendida verbalmente pelo arguido. Este chamava de puta e porca à sua mãe e desferia empurrões e "agarrões" à sua progenitora. Sempre, em contexto de discussões que o arguido tinha com AA e após ter tomado bebidas alcoólicas em excesso. Disse, mesmo que, o motivo da atuação do arguido contra sua mãe era o álcool. Confirmou porque também presenciou o episódio em que o arguido fez menção ao "Pepe" e a situação do Natal, em que sua mãe foi assistida pelo INEM. Por vezes a sua irmã via os factos, a qual é menor, atualmente, de 9 anos de idade e é filha do arguido e de sua mãe. O arguido tinha 2 espingardas em casa onde todos viviam, disse. O arguido era quem iniciava as discussões e vinha sempre embriagado. Levantava o braço e a mão na direção de sua mãe, mas não chegava a bater-lhe. LL confirmou ainda a situação em que o arguido a ameaçou, constante do facto provado 9.

A testemunha MB presenciou o que depôs. Disse que presenciou poucos factos, tendo, no entanto, observado o arguido a dizer, dirigindo-se a AA, que lhe batia e que era porca. Ameaçou-a com uma espingarda mas não viu esta arma, afirmou. Mais disse, que AA, andava sempre deprimida, triste e com medo, tomando medicação. Confirmou, por ter presenciado os factos, o episódio factual ocorrido num Natal, pois nessa altura ainda namorava com a LL e visitava a respetiva residência.

LL confirmou as mensagens de voz, via telemóvel, referidas no facto provado 25., porque as ouviu.

As testemunhas foram credíveis porque presenciais e imparciais devido a não terem confirmado todos os factos imputados ao arguido. Só afirmaram o que foi do seu conhecimento direto.

As declarações da ofendida/assistente contribuíram sobremaneira para a formação da convicção do julgador. Foram sustentadas pelos depoimentos das testemunhas, embora apenas em parte, e pela prova documental e pericial (avaliação). Apesar de ser parte interessada no pedido cível e interveniente processual, também, com interesse na condenação do arguido, os outros meios de prova foram de molde a lhe conferirem credibilidade em todas as suas declarações confirmativas do teor da acusação. A assistente/ofendida chorou com sinceridade no momento em que disse que o arguido mostrava-lhe a arma quando verbalizava o que verbalizou. Dizendo, que o arguido andava de arma na mão dentro da residência de ambos e morada da família.

A assistente/ofendida acabou por dizer, no final do julgamento, que ele, o arguido, era bom quando não estava alcoolizado e era mau quando estava embriagado.

O exposto leva à conclusão por este Tribunal que o arguido agiu e com dolo, com conhecimento e vontade, com intenção de atuar como atou.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a apreciar são as seguintes: no recurso do arguido, (b) violação do acusatório, (c) tipicidade dos factos provados, (d) medida da pena e (e) montante indemnizatório; no recurso da assistente, (f) suspensão da execução da prisão. Conhecer-se-á ainda, oficiosamente, da legitimidade da assistente para recorrer da pena, na sequência de alusão expressa pelo Senhor procurador-geral Adjunto no parecer, a esse propósito.

Como nota prévia, e atenta algumas considerações desenvolvidas na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público, consigna-se que os (dois) recursos interpostos versam exclusivamente matéria de direito. Inexiste, em qualquer deles, qualquer afloramento a impugnação da matéria de facto, seja por invocação de vício do art. 410º, nº 2, do CPP, seja por via do recurso amplo. Assim, as observações expostas pelo Ministério Público na resposta ao recurso a tal respeito não encontram correspondência nas impugnações efectivamente realizadas (cf. conclusões 9. e 10. da resposta ao recurso do arguido em que se refere “9. O Recorrente pretende impugnar o processo de formação da convicção do Tribunal que conduziu à fixação da matéria de facto, ao arrepio do princípio da livre apreciação da prova vertido no artigo 127.º do Código de Processo Penal. 10. O Recorrente parece querer substituir-se ao julgador, apresentando a sua interpretação dos factos provados, procurando impor a sua leitura e apreciação da prova.”).

a) Da legitimidade da assistente para recorrer da pena
A questão da eventual ilegitimidade da assistente para interpor o recurso que apresentou não foi suscitada no recurso do arguido, mas o Senhor Procurador-geral Adjunto referiu-se-lhe (e justificadamente) no parecer. Tal referência encontra razão na compatibilização do objecto do recurso (interposto por assistente desacompanhada do Ministério Público e restrito à temática da pena aplicada) com a jurisprudência fixada no Assento do STJ nº 8/99 (do seguinte teor: “O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”)

Referiu, a propósito, o Senhor Procurador-geral Adjunto no parecer, com a pertinência que justifica a transcrição (com alterações a nível de formatação):

“… Não se nos oferece dúvida relativamente à legitimidade da Assistente para interpor recurso da Sentença, posto decorrer à saciedade do processo, nomeadamente, da própria Sentença, assistir-lhe um “concreto e próprio interesse em agir”, tal como imposto pela Jurisprudência do Assento 8/99, de 30 de Outubro de 1997.

Para que assim se deva concluir, bastará atender aos requisitos que o Tribunal estabeleceu como condições de suspensão da execução da pena, a saber: - sujeição do arguido a tratamento contra o alcoolismo o arguido fazer tratamento contra o consumo de álcool, acompanhado de apoio psicológico para o qual o arguido já deu o seu consentimento (em audiência de julgamento); - proibição de uso e porte de arma durante 4 anos; - pagamento pelo demandado à demandante da indemnização no valor de 5.500,00 euros; - proibição de contactos com a ofendida, AA, presenciais e telefónicos (voz e escrita), mediante vigilância eletrónica, por 6 meses, com aparelhos que funcionem bem, devendo os atuais serem substituídos pela entidade competente.

O interesse em agir da Assistente, quanto à questão que, enquanto Recorrente, suscita, questionando a suspensão da execução da pena em que o Arguido foi condenado, está-lhe umbilicalmente ligado, sendo indiscutível a relevância que, para si, tenha a decisão do Tribunal a esse respeito.

Para a Assistente, saber que o Arguido, ainda que teoricamente condicionado, está em liberdade ou, ao invés, em reclusão, há-de convir-se, é tudo menos indiferente no que à sua segurança e paz de espírito diz respeito, tanto mais quanto é certo que o Arguido já deu provas (comprovadas na Sentença) de que não arrepia caminho, reiterando, mesmo após o julgamento se ter iniciado, comportamentos que põem em causa a segurança e a tranquilidade da Assistente.”

A argumentação desenvolvida pelo Ministério Público nesta Relação merece integral acolhimento, pouco se impondo acrescentar como justificativo do reconhecimento da legitimidade e/ou interesse em agir da assistente no recurso que interpôs.

Dispensando-nos de precisar a destrinça entre legitimidade e interesse em agir (por concretamente dispensável para a decisão), consigna-se que a admissibilidade do recurso da assistente se enquadra na jurisprudência fixada no Assento nº 8/99, em nada a afrontando.

Na verdade, pode ler-se na fundamentação do acórdão uniformizador: em matéria de pena “… caso a caso se terá de conhecer da existência ou não de um concreto e próprio interesse em agir”, “… se o assistente não demonstrar um real e verdadeiro interesse, um seu pedido de agravação da pena (em termos de espécie ou de medida) tem um cunho, ou, pelo menos, aparenta tê-lo, de regresso à vindicta privada, o que de há muito felizmente desapareceu das nossas leis”, “a correcção desta decisão (da admissibilidade do recurso) depende da existência de, no caso, haver um concreto e próprio interesse em agir”.

O interesse em agir resulta assim, aqui, amplamente demonstrado pelas razões transcritas, retiradas do parecer elaborado pelo Senhor Procurador-geral Adjunto, em total correspondência com a realidade do processo. E desse concreto interesse em agir, na interpretação desenvolvida no Assento nº 8/99, deriva então a legitimidade da assistente para interpor o seu recurso. O que se consigna.

b) Da violação do acusatório
O arguido suscita a questão da violação do acusatório por ter sido alegadamente condenado por factos incriminatórios que não constavam da acusação.

Argumenta que na sentença condenatória foram considerados provados factos ocorridos em 11 de Novembro de 2018, que a acusação foi proferida em 18 de Maio de 2018 e que nela se imputaram ao arguido factos praticados até 20 de Janeiro de 2018. Conclui que, tendo o processo penal estrutura acusatória, o princípio da investigação da verdade material tem de ser exercido nos limites traçados na acusação ou na pronúncia, que a actividade cognitiva e decisória do Tribunal está estritamente limitada pelo limite temporal constante da acusação, e que o Tribunal a quo se deveria ter abstido de, no presente processo, analisar factos que ocorreram após o limite temporal fixado na acusação, e que eram objectivamente supervenientes. A sentença estaria, por tudo, “ferida de nulidade insanável”.

Na resposta ao recurso, e desconformemente à posição assumida antes em julgamento, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do atendimento da posição do recorrente. Assim, concluiu o respondente que “os factos constantes dos pontos 25. e 28. da douta sentença recorrida são supervenientes do limite temporal do objecto do processo que havia sido fixado pela acusação, assim extravasando as condições do artigo 358.º do Código de Processo Penal”, que “tais factos representam uma verdadeira alteração substancial dos factos, na medida em que estamos perante um facto histórico novo” e que “a sentença recorrida parece enfermar de nulidade, por violação das alíneas b) e c) do n.º 1, do artigo 379.º do Código de Processo Penal, mas circunscrita” (pois, de acordo com o respondente, expurgada a matéria de facto contida nos pontos 25 e 28, a restante factualidade dada como provada seria suficiente para ser proferida uma decisão condenatória pela prática do crime de violência doméstica).

No entanto, já na Relação, o Senhor Procurador-geral Adjunto distanciou-se desta posição, considerando que, nesta parte, não ocorreria nulidade de sentença pelas razões que se transcreverão mais adiante.

O objecto do processo é fixado na acusação, esta delimita os poderes de cognição do tribunal, que fica tematicamente vinculado à acusação do Ministério Público. O princípio da vinculação temática surge na decorrência da estrutura acusatória do processo (art. 32º, nº 5 da CRP) e inter-relaciona-se com as garantias de defesa do arguido de um modo marcante. O arguido não pode ser julgado nem condenado por factos não originariamente conhecidos e dos quais não se pôde defender.

Da estrutura acusatória do processo, com assento constitucional, decorre assim que impende sobre o acusador a exposição total do facto que imputou ao arguido, na acusação. É ao acusador e só a ele que cabe a iniciativa da definição do objecto da acusação e do processo.

Mas sendo o sistema do Código de Processo Penal de acusatório impuro ou de acusatório mitigado por um princípio da investigação (oficiosa, pelo juiz - art. 340º nº1 do CPP) de modo a viabilizar, nos limites do possível (com a salvaguarda das garantias de defesa), a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa, o juiz pode intervir excepcionalmente na narrativa dos factos da acusação, reformatando-os ou mesmo acrescentando-os. Essa reconformação da acusação, quando de uma real alteração de factos se trate (real alteração no sentido de dela resultarem consequências de direito), opera-se por via dos mecanismos previstos nos arts 358º e 359º do CPP.

Estas normas servem a prossecução das finalidades do processo penal, garantindo simultaneamente os direitos de defesa do arguido. Visa-se punir, na medida do possível, pelos factos (e crime) do acontecido e, não, punir por factos artificialmente construídos no processo, nem por um título fictício de crime.

Este objectivo não é, porém, absoluto e ilimitado. E do que se trata é sempre de precisar a fronteira dentro da qual os poderes de cognição do juiz se podem movimentar, de definir até que ponto o julgador pode alterar uma acusação, em cumprimento do princípio da investigação e em obediência a uma verdade material, sem contender com os princípios da vinculação temática e do acusatório, e sem ferir as garantias de defesa.

Na definição do art. 1º – al. f) do CPP, “alteração substancial dos factos” é aquela que tiver por efeito a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Será, então, não substancial a alteração (de factos) que a não tenha. E as modificações da base factual do processo que não se repercutam em nenhuma das situações previstas na al. f) do art. 1º podem ser levadas em conta pelo tribunal, devendo cumprir-se o art. 358º do CPP quando as alterações contendam com o exercício dos direitos de defesa. É esta última situação a que ocorre no presente caso.

Concretizando, e como relatou o Senhor procurador-geral Adjunto no parecer em total conformidade com a verdade do processo (e por isso se transcreve), “o Ministério Público, em 18.5.2018, deduziu Acusação contra o Arguido imputando-lhe a prática do crime pelo qual veio a ser condenado.

Para o que ora importa, na Acusação alegara, além do mais, o seguinte:

23. No dia 30.01.2018, o arguido foi submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, na sequência do qual lhe foram aplicadas, além de outras, a medida de coação de coação de proibição de contactos, por qualquer meio, com AA.

24. Não obstante, o arguido manteve os seus intentos e ausência de crítica para o seu comportamento insistindo em contactar telefonicamente AA, ligando-lhe por essa via várias vezes ao dia insistindo com a mesma para reatarem o seu relacionamento, o que faz bem sabendo não ser intenção daquela reatar qualquer relacionamento consigo e que contraria o desejo daquela em não ser por contactado, afetando dessa forma a paz, o sossego, e tranquilidade daquela.”.

Na Sentença, relativamente a esta factualidade, o Tribunal deu como provado que:

23. No dia 30.01.2018, o arguido foi submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, na sequência do qual lhe foram aplicadas, além de outras, a medida de coação de coação de proibição de contactos, por qualquer meio, com AA;

24. Não obstante, o arguido manteve os seus intentos e ausência de crítica para o seu comportamento insistindo em contactar telefonicamente AA, ligando-lhe por essa via várias vezes ao dia insistindo com a mesma para reatarem o seu relacionamento, o que faz bem sabendo não ser intenção daquela reatar qualquer relacionamento consigo e que contraria o desejo daquela em não ser por contactado, afetando dessa forma a paz, o sossego, e tranquilidade daquela”.

Ou seja, precisamente a factualidade tal como descrita na Acusação.”

Estes “primeiros factos”, ocorridos já após o início do processo mas sendo anteriores à prolação da acusação, constam desta e não se encontram sequer questionados no recurso do arguido. Nada se oferece dizer agora sobre eles, portanto.

Prossegue o parecer, sempre de acordo com os elementos do processo:

“Não obstante, o Tribunal considerou ainda como provado o seguinte:
“25. No dia 11 de novembro de 2018, o arguido enviou, várias mensagens, via telemóvel, dizendo "não queres ouvir as verdades ... eu gosto de ti, anda com quem tu quiseres, com quem não gosta de ti, logo hás de ver. Vai lá à do L, vai buscar a lenha a quem diz mal de mim, se não morrer até quarta-feira vão se ver negros, porque vocês vão pagar tudo e mais alguma coisa, têm de pagar por tudo ... eu quando faço o almoço faço-te com carinho e com vontade ... vou ali buscar uma espingarda para te matar ... com a camada de droga que ele tem em cima dos cornos, vocês vão ver.";
(…)
28. O arguido, no que respeita ao facto provado 25., agiu consciente, livre, deliberada e voluntariamente, quis provocar medo e angústia em AA, fazendo-a temer pela vida e integridade física de sua filha LL, e de temer pela vida e integridade física de MB, ex-namorado de LL e testemunhas no presente julgamento e, também, pela sua vida e integridade física, bem sabendo que ao assim atuar violava um especial dever de respeito para com a sua ex-companheira e mãe da sua filha, perturbando e prejudicando a consideração e amor-próprio daquela enquanto mulher, mãe e ex -companheira;

29. Em todos os momentos da sua atuação sabia o arguido que as suas condutas eram e são previstas e puníveis por lei penal, não se coibindo ainda assim de adotar aqueles comportamentos;”.

Estes “segundos factos” (os descritos em “25.” e “28.”) não constavam da acusação (e passaram a estar compreendidos no facto provado 29., que também os passou a abranger, embora este não esteja expressamente invocado no recurso).

Constata-se assim a conformidade processual da alegação do recorrente arguido, de que o ponto 25. dos factos (objectivos) provados e o ponto correspondente dos factos subjectivos (28. e implicitamente também parte do 29.) não constavam da acusação.

Estes pontos foram aditados na sentença, após comunicação oficiosa do tribunal, nos termos e para os efeitos previstos no art. 358º do CPP.

Com efeito, das actas consta ter sido dado cumprimento o art. 358º do CPP, de modo mais ou menos pormenorizado e rigoroso, o que não cumpre apreciar aqui pois não foi impugnado.

O julgamento teve início em 07.11.2018, prosseguiu nas sessões de 14.11.2018, 19.11.2018, 23.11.2018, 10.12.2018, e terminou a 19.12.2018 com a leitura da sentença. E na acta de 23.11.2018 pode ler-se:

“= DESPACHO =
"Entre a audiência de julgamento de produção de prova e a data marcada para a leitura da sentença (19/11/2018), foi remetida aos autos, pela GNR, um expediente relativamente a novos factos não constantes na acusação, que constituem uma alteração não substancial dos factos, no entender deste Tribunal, mantendo o mesmo enquadramento jurídico.

Estes factos devem ser comunicados aos Ilustres Advogados da assistente e do arguido e ao Sr. Procurador-adjunto, de modo a, querendo, se pronunciarem sobre a necessidade de produção de prova ou não sobre a nova factualidade.

Assim, reabro a audiência para comunicar os factos constantes no referido expediente - cfr. artigo 358º, nº 1 do C. Processo Penal."

Ainda de acordo com a acta, dada a palavra à defensora do arguido, esta requereu:

"Face ao expediente junto aos autos requer-se que sejam tomadas declarações ao arguido, bem como à assistente, quanto ao conteúdo do mesmo".

E o senhor Procurador-adjunto, promoveu:
"A factualidade descrita na informação remetida pela GNR de Castro Verde havia sido já relatada, ao menos parcialmente, pela assistente em sede de julgamento.

Através da sua Ilustre Advogada o arguido requereu que fossem tomadas declarações ao próprio e à assistente, nada tendo a opor ao mesmo.".

Por último, a advogada da assistente referiu:
"Tendo em conta o teor do auto de notícia junto aos autos em 15/11/2018, pela GNR de Castro Verde, auto de notícia esse que se encontra totalmente relacionado com o crime de violência doméstica objecto deste processo, tendo em conta que o conteúdo desse mesmo auto de notícia é susceptível de vir a influenciar a final a medida da pena a aplicar ai arguido, tendo em conta, ainda, os princípios da investigação e da descoberta da verdade material, por se afigurar imprescindível à boa decisão da causa, requeiro, nos termos do artigo 340º, nº 1 do C. Processo Penal a inquirição da testemunha AF, Guarda de Infantaria do Posto da GNR de Castro Verde, bem como da filha da assistente LL..

Mais se requer que sejam tomadas declarações, quer ao arguido, quer à assistente, tal como aliás já foi deferido.".

Dada novamente a palavra ao Ministério Público e à defensora do arguido, “pelos mesmos foi dito nada ter a opor.”

De tudo resulta que se mostra cumprida a comunicação a que se refere o art. 358º do CPP. E, independentemente da forma menos rigorosa como se mostra ter sido concretizada a especificação dos factos comunicados, da acta resulta que tal comunicação foi devidamente percepcionada e compreendida por todos os sujeitos processuais. Todos compreenderam a que factos dizia respeito (aliás, o ponto de facto em causa, acrescentado, é linear e desprovido de qualquer complexidade), todos a aceitaram, todos se pronunciaram e requereram as diligências que entenderam. Nada tiveram a opor a nada do que foi requerido e ao que o tribunal ordenou.

O arguido requereu diligências de defesa que lhe foram deferidas. E também o Ministério Público anuiu sobre a legalidade de todo o procedimento. E essas diligências tiveram realmente lugar: na acta consta o seguinte despacho: “Defiro o requerido, quer pela Ilustre Advogada do arguido, quer pela Ilustre Advogada da assistente, ao abrigo do disposto nos artigos 358º, nº 1 e 340º, nº 1 do C. Processo Penal” e foi designada data para realização das diligências requeridas, ou seja, para audição do arguido, da assistente e das testemunhas sobre estes novos factos.

De tudo resulta que os pontos de facto 25. (facto objectivo) e 28. (facto subjectivo) foram realmente aditados na sentença (pois não constavam da acusação) e que relativamente a eles foi regularmente cumprido o art. 358º do CPP.

Está assim apenas em causa o saber se o ponto aditado consubstancia uma alteração não substancial de factos, pois, da resposta afirmativa, resulta logo a legalidade dos procedimentos e da sentença.

O arguido estava acusado da prática de um crime de violência doméstica na sequência de inúmeros episódios que configuram maus tratos a cônjuge (conforme se desenvolverá no ponto seguinte).

Recorde-se que o facto aditado na sentença é apenas o seguinte: “25. No dia 11 de novembro de 2018, o arguido enviou, várias mensagens, via telemóvel, dizendo "não queres ouvir as verdades... eu gosto de ti, anda com quem tu quiseres, com quem não gosta de ti, logo hás de ver. Vai lá à do L., vai buscar a lenha a quem diz mal de mim, se não morrer até quarta-feira vão se ver negros, porque vocês vão pagar tudo e mais alguma coisa, têm de pagar por tudo... eu quando faço o almoço faço-te com carinho e com vontade ... vou ali buscar uma espingarda para te matar ... com a camada de droga que ele tem em cima dos cornos, vocês vão ver.” (e os factos correspondentes relativos à componente subjectiva, descritos em 28. E incluídos em 29.).

Trata-se assim de uma conduta relacionada com os factos inicialmente imputados, pois, descritivamente, reitera ou prolonga um tipo de comportamento global como o descrito na acusação (e nela desdobrado em inúmeros outros actos).

Tendo em conta que os factos inicialmente descritos na acusação realizam (realizavam já), plenamente, o tipo de crime imputado (como se concretizará no ponto seguinte), o facto novo não se mostra essencial à afirmação da tipicidade.

O facto novo também não configura um crime autónomo e não foi nem naquele, nem neste sentido que o tribunal o considerou e avaliou.

Ele releva juridicamente - e daí ter sido objecto de comunicação legal prévia obrigatória -, mas apenas para a medida de pena. Releva designadamente nos termos do art. 71º nºs 1 e 2 do CP, cuja al. e) do nº 2 manda precisamente atender à “conduta posterior ao facto”.

É neste sentido, de conduta posterior ao facto (a que o tribunal está legalmente obrigado a atender), que o facto novo pode e deve ser valorado. Ele não interfere na decisão sobre a culpabilidade, ele não é decisivo para o juízo de condenação; a sua valia esgota-se na mensuração das exigências de prevenção que o caso revela.

Tratando-se de uma alteração não substancial de factos, no sentido explanado, e tendo sido dado cumprimento ao disposto no art. 358º do CPP, podem tais factos novos integrar a matéria de facto provada da sentença e relevar na determinação da pena, nos termos expostos. Desde logo porque a lei manda atender ao “comportamento posterior do arguido”.

Uma nota final sobre uma arguição de nulidade de sentença constante do parecer, e alegadamente consistente numa ausência de tratamento (na sentença) de um outro núcleo de factos imputados ao arguido e trazidos ao conhecimento do tribunal em julgamento, no momento imediatamente anterior à leitura da sentença.

Trata-se de um “terceiro facto”, posterior aos primeiramente comunicados (e já apreciados), e que, por sua vez, foram comunicados também ao arguido, pelo tribunal, nos termos do art. 358º do CPP. Ou seja, ocorreu ainda uma segunda comunicação de factos em julgamento.

Sucede que o arguido, neste caso, requereu que o Tribunal se abstivesse de conhecer do facto novo, posição que granjeou o acordo do Ministério Público, Ministério Público que requereu extracção de certidão para procedimento criminal autónomo contra o arguido por esses factos novos, posição que o tribunal veio a adoptar.

Da acta de audiência de julgamento, na parte que agora releva, consta despacho do seguinte teor: “(…) No que respeita ao expediente da GNR que foi ao conhecimento da Juiz signatária a 07 de Dezembro de 2018 (sexta-feira passada), concorda-se com o Ilustre Advogado Defensor do arguido nos precisos termos requeridos. Termos em que desentranhe o expediente da GNR (06-12-2018) e remeta ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.”

Assim sendo, a sentença conheceu de toda a matéria de facto de que cumpria ao tribunal conhecer, não ocorrendo qualquer insuficiência dos factos provados para a decisão. O que se consigna.

(c) Da tipicidade dos factos provados (que constavam já da acusação)

O arguido questiona a (ir)relevância típica dos factos provados argumentando que “ainda que se considere que todos os factos dados como provados o foram de forma processual e legalmente válida, sempre a decisão deveria ter sido a da absolvição do recorrente”, pois “está em causa uma relação conjugal que durou cerca de onze anos, pautada pela baixa escolaridade de ambos e o consumo de álcool originava discussões entre o casal, e no âmbito das quais o Recorrente proferiria as expressões constantes da Douta Sentença”. Acrescenta o arguido que “a sentença refere genericamente que as situações ocorreram várias vezes, sem concretizar a frequência com que as mesmas aconteciam, dando apenas como provadas quatro circunstâncias que resultaram minimamente concretizadas factual ou temporalmente”. E conclui que “o que existiu foi uma relação conjugal marcada por discussões e excesso de consumo de álcool, num ambiente de alguma miséria moral e de princípios”, a conduta do recorrente “não se revestiu de uma especial gravidade, com desrespeito pela dignidade da sua companheira” e “dos factos dados como provados nos presentes autos não se pode retirar o preenchimento do crime de violência doméstica, pois não resultaram provados quaisquer atos violentos que, pela sua imagem global e pela sua gravidade, devam ser tidos como desrespeitadores da pessoa da vítima, ou do desejo de prevalência e de dominação sobre a mesma, e, logo, suscetíveis de serem classificados como maus tratos”.

Na avaliação sobre a tipicidade, atender-se-á apenas aos factos provados que se encontravam já descritos na acusação, como se disse no ponto anterior.

É de reconhecer que seria desejável uma maior concretização de alguns dos episódios descritos nos factos provados, quer a nível da descrição das concretas acções perpetradas, quer a nível da sua localização temporal. Há factos localizados temporalmente apenas nos onze anos de relação conjugal; há acções descritas conclusivamente (v. g.: “ao longo da sua relação com AA, o arguido dirigiu a AA comentários depreciativos, de teor não concretamente apurado, sobre as amizades desta…”, “No dia de Natal, o arguido chegou uma vez mais a casa alcoolizado tendo iniciado nova discussão com a vítima, de teor não concretamente apurado, mas por causa da filha do casal e da filha da vítima, LL, que com eles residia”, “Mesmo quando se encontrava a ser transportada pelo INEM, o arguido não se coibiu de dirigir à ofendida expressões, não concretamente apuradas, mas de idêntico teor ofensivo às acima referidas.

No entanto, outras acções existem que se encontram mais pormenorizadamente descritas nos factos provados, quer no que respeita à descrição da concreta conduta imputada ao arguido, quer no que toca à localização temporal. Também a localização espacial dos factos é sempre determinada. E mesmo relativamente aos factos que não se concretizam melhor em dias ou anos, de acordo com a matéria de facto provada situam-se sempre, inquestionavelmente, na constância da relação conjugal. E respeitam a um comportamento reiterado e persistente do arguido, ou seja, a um certo padrão de comportamento nessa relação.

Este padrão de comportamento na relação não se retira apenas dos factos descritos duma forma mais vaga, conclusiva ou imprecisa (tipo de descrição que acaba por surgir com frequência quanto a crimes traduzidos em factos de expressão plúrima, repetitiva e prolongada extensamente no tempo). O padrão de comportamento na relação retira-se também - e essencialmente, na decorrência das exigências da estrutura acusatória do processo -, dos factos descritos de modo mais preciso e concretizado, suficientemente concretizado, que, completados com todos os outros, permitem então configurar um episódio de vida globalmente materializado com suficiência nos factos provados da sentença. Assim permitindo concluir que os factos provados que já constavam da acusação realizam efectivamente o crime da condenação.

Como se destacou com pertinência no parecer, “pretender que a conduta do Arguido não se revestiu de especial gravidade e que os factos provados, na sua globalidade, não poderão ser considerados maus tratos, desrespeitadores da pessoa da Assistente e de um manifesto desígnio de sobre ela exercer domínio, condicionando a sua liberdade e autodeterminação e afectando a sua dignidade enquanto ser humano, é desconsiderar (…) toda a matéria factual que o Tribunal deu como provada.

Nomeadamente:
- que o Arguido “chegou a dormir com as armas de caça, que então possuía, sobre a cama, o que fazia com intenção de provocar medo e terror na vítima” - cfr. Facto Provado “11.”;

- que “No dia em que as armas lhe foram apreendidas, em data que se desconhece, mas pelas 22h00, o arguido fechou-se em casa não permitindo a entrada da vítima, que teve de a arrombar para conseguir entrar” - cfr. Facto Provado “12.”;

- ou ainda, que no decorrer das discussões que mantinha com a Assistente “o arguido, com intenção de intimidar e amedrontar a vítima, pegava num machado com cerca de 30 cm de cabo e 8 cm de lâmina, que mostrava e brandia à frente da vítima, ao mesmo tempo que dizia "qualquer dia ..."” - cfr. Facto Provado “15.”;

- bem como que, dirigindo-se à Assistente, o Arguido lhe disse que “qualquer dia arranco-te a cabeça” - cfr. Facto Provado “16.”;

- tendo, igualmente, “o arguido, na presença também da sua filha, com 9 anos de idade, dirigiu a AA as expressões "puta", "és uma porca", "não fazes nada", dizendo-lhe também que só ele trabalhava, referindo uma vez mais "qualquer dia faço-te o mesmo que o Pepe fez à mulher", ou seja, que a matava” - cfr. Facto Provado “21.”;

(…) tudo isto ao longo de anos, impõe, à evidência, que o Arguido, agindo com desprezo e intenção de, apoucando-a, humilhar a Assistente, cometeu, sem margem para dúvidas, o crime de violência doméstica agravado pelo qual veio a ser condenado.”

Aditem-se os comprovados “empurrões” desferidos, que traduzem uma acção agressiva sobre o corpo e a saúde física da vítima (e não apenas psíquica, vertente mais fortemente atingida no presente caso).

O tipo da condenação pune quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, não sendo imprescindível à realização do tipo “maltratar fisicamente”.

O tipo abrange as situações de violência familiar nas relações afectivas, degradante da integridade pessoal da vítima. Tutela a integridade da pessoa em determinado contexto de relação, a dignidade da pessoa no casal conjugal e a sua razão de ser não reside na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas na protecção da pessoa individual que a integra.

Protege-se o bem jurídico “saúde” na sua acepção mais ampla (não apenas a integridade física), abrangendo a saúde física, psíquica e mental (assim, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, p. 512), e também a liberdade.

O bem jurídico assim identificado é uma “concretização do direito fundamental da integridade pessoal (art. 25.º da Constituição), mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26.º, n.º 1, da Constituição) (...), ambos emanações directas do princípio da dignidade da pessoa humana” (André Lamas Leite, “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, Julgar, 12, 2010 (pp. 49-50).

Resulta evidente que a conduta do arguido configura “maus-tratos” (essencialmente psíquicos, mas também físicos), pois traduz actos de expressão violenta que, alguns deles por si só (como a “imposição” da presença de armas de fogo no leito conjugal, o brandir ameaçador de cutelo, as ameaças verbais de morte, tudo com uma comprovada intenção de causar temor), outros porque reiterados e em conjunto (como os empurrões, os insultos, o fecho da porta do domicílio impedindo a entrada, o vasculhar dos objectos pessoais da vítima…), atingem fortemente a saúde da vítima, saúde na acepção mais ampla que se referiu.

A avaliação da imagem global do facto, avaliação que se exige atento o tipo de crime em apreciação, permite afirmar a tipicidade dos comportamentos.

Recorde-se que abrangidos pela violência doméstica estão tanto os casos de “microviolência continuada” (que Nuno Brandão refere como caracterizando-se pela “opressão (…) exercida (…) através de repetidos actos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação” – “A tutela especial reforçada da violência doméstica”, Julgar, n.º 12, 2010 (pp. 9-24), pp. 21-22), como os actos isolados mas intensos.

No caso presente, constata-se a ocorrência dos dois.
A assistente permaneceu durante onze anos coabitante com o arguido e “dentro” da relação afectiva. Os factos provados evidenciam a adopção de um comportamento fortemente agressivo, por parte do arguido, ao longo de toda a relação. Comportamento repetido, portanto, por muitos anos, sobre a pessoa da vítima que se foi, assim, fragilizando e diminuindo enquanto “pessoa” (estando ainda provado que na sequência dos comportamentos do arguido, a ofendida tentou colocar termo à vida).

Por tudo se conclui que os factos provados são suficientes para a realização do tipo de crime “violência doméstica” do art. art. 152º, nº 1 als. b-) e c-) e n° 2 do CP e que estes factos se encontravam razoavelmente concretizados na acusação, estando-o também na sentença. Permitiram o exercício dos direitos de defesa e resultaram (provados) da discussão no contraditório do julgamento. Encontram-se situados no espaço e razoavelmente situados no tempo. Estão especificados em alguns comportamentos, que se descrevem com mais precisão. E tratando-se de factos que não terão deixado marcas individualizadas mais “visíveis” e que decorreram ao longo de um período temporal bastante extenso (onze anos) compreende-se a menor concretização na descrição de alguns deles.

(d) Da medida da pena e (f) da suspensão da execução da prisão
Os dois recorrentes impugnam a decisão em matéria de pena: o arguido pede a sua redução, na decorrência da mesma argumentação que desenvolveu em defesa da atipicidade da conduta, e a assistente pugna pela aplicação de prisão efectiva.

Da análise dos dois recursos e da argumentação que os sustentam, incidentes sobre a pena aplicada mas de sinal contrário, resulta que tanto o interposto pelo arguido como o interposto pela assistente apresentam razões que merecem algum atendimento.

O arguido defende que, ainda que se entenda que os factos provados consubstanciam a prática do crime de violência doméstica, a pena concretamente aplicada mostra-se manifestamente desadequada e desproporcional tendo em conta os factos provados, os antecedentes criminais, e ainda a moldura penal do crime em causa. Pugna pela “fixação da pena de prisão no mínimo legal, suspensa por igual período, suspensão essa sujeita, quanto muito, à frequência de tratamento do consumo de álcool”.

A assistente argumenta que “a personalidade do arguido expressa nos factos, o não reconhecimento dos mesmos, o elevado grau de ilicitude dos mesmos a intensidade do dolo directo, a reiteração de condutas, a inexistência de arrependimento, as suas condições pessoais, de onde se destaca o seu problema de alcoolismo, a sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, são factores que não permitem concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Na resposta aos recursos o Ministério Público sustentou a sentença, mas já na Relação o Senhor procurador-geral Adjunto enunciou uma nulidade de sentença decorrente de deficiências na fundamentação da pena.

Assim, desenvolveu no parecer, e com pertinência (transcrição em formatação livre):

“A Sentença foi absolutamente parca ao fundamentar a decisão de suspender a execução da pena em que condenou o Arguido.

(…) Daqui decorre que as razões pelas quais o Tribunal decidiu suspender a execução da pena e, consequentemente, correr o risco prudente que a suspensão sempre implica, se cingiram ao facto de o Arguido estar profissionalmente integrado e não terem resultado lesões e sequelas físicas no corpo da Assistente.

Para além de manifestamente insuficiente, esta fundamentação é claramente redutora e até algo contraditória, posto que o Tribunal, na Sentença, ao apreciar e decidir o pedido de indemnização civil formulado pela Assistente, considerou expressamente que “O sofrimento, angústia, ansiedade, medo e sentimento de falta de segurança causados pelo demandado na demandante merecem a tutela do Direito”.

As sequelas psíquicas, não poucas vezes, são tão ou mais gravosas do que as físicas.

O Tribunal, para além de, objectivamente, as ter omitido, desconsiderou, em absoluto, o sofrimento causado na Assistente pela conduta do Arguido, independentemente de esta ter, ou não, deixado sequelas naquela.

A fundamentação da Sentença, neste particular, é manifestamente deficitária, impondo-se ao Tribunal que supra esse défice, fundamentando com suficiência e decidindo, a final, se mantém, ou não, a suspensão da execução da pena.

Acresce que, no elenco dos factos provados, ao reportar-se aos antecedentes criminais do Arguido, o Tribunal deu como provado (facto provado “30.”), tão só, o “Teor do certificado do registo criminal do arguido”.

Atente-se que um dos factos que foi sopesado na escolha e medida da pena foi “o facto de o arguido ter antecedentes criminais, nomeadamente com uso de arma de fogo”.

A mera referência, nos termos em que o foi, ao conteúdo do certificado do registo criminal do Arguido é insuficiente, posto que fica sem saber-se quais, efectivamente, as condenações relevantes que do mesmo constam e quais, de entre elas, o Tribunal considerou, nomeadamente, na escolha e na medida da pena e na ponderação relativa à suspensão da execução da pena.

A uma Sentença exige-se clareza, que não importação de factos por mera remissão, razão pela qual se nos afigure que, também neste segmento, a Sentença seja nula, nos termos disposições conjugadas dos artºs. 379º e 374º, nº 2, do CPP.”

As críticas efectuadas à decisão sobre a pena no excerto do parecer acabado de transcrever justificam-se plenamente, como se adiantou.

A sentença recorrida está longe de se apresentar como modelar no que respeita à suficiência desta fundamentação, ou seja, não procede esgotantemente à justificação da pena, nem de facto nem de direito. No entanto, essas insuficiências, que não deixarão de se assinalar, não chegam a comprometer a sentença, nem prejudicam o conhecimento do recurso, como se verá.

Assim, desde logo, a fundamentação de facto da pena deveria ter envolvido, para além da enunciação dos factos pessoais do agente, presentes na sentença, a descrição completa dos seus antecedentes criminais, que assumidamente se elegeram como elemento de ponderação.

Concretizando, não basta enunciar nos factos provados que o recorrente tem os antecedentes criminais que constam do seu CRC, sem nada mais se especificar.

O juízo sobre a pena envolve a identificação casuística das exigências de prevenção especial, à qual não pode ser alheia a avaliação dos resultados das condenações anteriores no comportamento do condenado. Ou seja, em casos de arguidos não primários, cumpre saber das concretas sanções criminais anteriormente experimentadas, aquilatar do seu maior ou menor sucesso, da resposta que ainda possam oferecer para o caso concreto, sobretudo quando a nova pena a proferir é a de prisão.

Tendo presente que a decisão sobre a pena assenta sempre num juízo de prognose, configurando “necessariamente uma estrutura probabilística” e não podendo “senão concretizar-se por aproximações” (Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 27), há que dotar a sentença de todos os factos necessários e possíveis. Esses factos, que acrescem aos relativos à culpabilidade, são essencialmente os que se relacionam com a personalidade do arguido e com o seu comportamento anterior e posterior aos factos, incluindo os antecedentes criminais.

Os juízos de prognose não devem resultar de uma mera “intuição” assente na “experiência da profissão”. Antes pressupõem “um trabalho teórico-prático de recolha e valoração de dados e informações acerca das pessoas e dos factos em causa”, o que implica um “alargamento da base da decisão” de modo a incluir os factos relativos à pessoa do condenado e aos seus antecedentes criminais (Anabela Rodrigues, loc. cit., p. 28-30).

E sendo a sentença penal uma peça processual “auto-suficiente”, tem de dispensar remissões ou consultas de outras folhas do processo para a sua integral compreensão.

A fundamentação de direito (da pena) também é passível de censura. A justificação apresentada para a suspensão da execução da pena apresenta-se insuficiente, ou seja, as razões apresentadas não a explicam devidamente.

Apesar destas deficiências de fundamentação configurarem realmente nulidade de sentença (arts. 379º e 374º, nº 2, do CPP), a Relação não está impedida de, no presente caso, a(s) suprir. Encontra-se em condições de proceder a esse suprimento, quer analisando directamente o CRC do arguido junto aos autos – cujo teor deveria estar efectivamente descrito nos factos provados da sentença e não apenas a menção de que os antecedentes criminais do arguido são os do CRC –, quer avaliação a fundamentação da pena no confronto das argumentações desenvolvidas no contraditório do(s) recurso(s). Tudo tendo sempre por base os factos provados da sentença, relativos à culpabilidade e à determinação da sanção.

Assim, do CRC do arguido resulta que sofreu duas condenações anteriores em pena de multa, a primeira por crime de condução sob o efeito do álcool (factos e condenação de 2006); a segunda por crime de uso e porte de arma sob o efeito do álcool ou estupefaciente (factos de 2011, condenação de 2013).

As condenações anteriores, bem com os factos provados da sentença, revelam que o arguido tem uma ligação ao consumo excessivo de álcool que se relacionará com a prática dos crimes. Tanto dos crimes pelos quais foi condenado anteriormente, como do presente. E as condenações anteriormente sofridas, mormente a segunda condenação por crime de uso e porte de arma sob o efeito do álcool (a primeira só por si não seria muito significativa atento o tipo de crime ali em causa), não terão levado o arguido a procurar alterar o comportamento no que respeita à ligação de condutas delituosas com o consumo excessivo de álcool. Nada ficou provado que permita concluir que o tenha feito, tendo até resultado demonstrado o contrário.

Também no que respeita aos autos, a pendência do presente processo revelou-se de nulo efeito dissuasor na alteração do comportamento persecutório da vítima. E se bem que as finalidades das medidas de coacção não se cruzem nunca com as finalidades da pena (aquelas são medidas de natureza estritamente cautelar que não servem exigências preventivas, estando estas exigências reservadas à punição – e não é neste sentido que se alude à pendência do processo), no presente caso, a indiferença revelada pelo arguido em relação à aplicação da medida de coacção proibição de contactos com a vítima e o desrespeito ostensivo que se lhe seguiu (e que consta dos factos provados da sentença) não podem deixar de relevar no diagnóstico sobre as exigências de prevenção especial, elevando-as.

Mas sendo sempre os recursos remédios jurídicos e mantendo o seu arquétipo de recurso-remédio também em matéria de pena, cumpre partir da sentença. E nesta justificou-se a pena da seguinte forma:

“A determinação da medida concreta da pena será efectuada segundo os critérios consignados no Art. 71.° do Código Penal, onde se explicita que a medida da pena se determina em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, no caso concreto, a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente e contra ele.

Há que considerar no caso concreto:
O alarme social elevadíssimo neste tipo de crime, tão cometido nosso país;
- o grau de ilicitude do facto, que se considera médio alto (e não elevado), porque o arguido estava alcoolizado, o que constitui em simultâneo agravante e atenuante;
a intensidade do dolo que se considera elevada, pois o arguido atuou com dolo direto;
- motivo da prática do crime: estar alcoolizado em excesso;
- facto de o arguido ter antecedentes criminais, nomeadamente com uso de arma de fogo;

- as necessidades de prevenção especial da vítima são muito elevadas, devido às ameaças de morte futuras, contra a vida da ofendida e de terceiros (a enteada do arguido, LL, e o ex-namorado desta) causando na assistente grande preocupação, sobretudo, pela vida de sua filha (enteada do arguido), e muito medo;

Atendendo a todas as circunstâncias atrás expendidas, considero adequado aplicar ao arguido uma pena de 4 anos de prisão.

Uma vez que no caso em apreço foi aplicada uma pena de prisão, há que averiguar se se verificam os pressupostos da suspensão da execução da pena, cujos requisitos constam do art." 50° do Código Penal.

Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 38 edição, 10 vol., Rei dos Livros, pp. 637 e S8., referem que ( ... ) na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao arguido, ou seja, uma esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. ( ... ) Devem ser valoradas todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a condutafutura do arguido, atendendo somente às razões da prevenção especial ( ... ).

Assim, considerando que o arguido é pessoa profissionalmente integrada e que não houve lesões e sequelas fisicas no corpo de AA, entende-se que estão reunidos os pressupostos necessários para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, devendo a mesma ser suspensa pelo período de 4 anos, nos termos do artigo 50° n° 5 do C.P.

Esta suspensão da execução da pena de prisão aplicada fica dependente do cumprimento pelo arguido das seguintes condições, nos termos do n" 4 do art. 152° do CP:

- o arguido fazer tratamento contra o consumo de álcool, acompanhado de apoio psicológico;

- o arguido, durante 4 anos, ficar proibido de uso e porte de arma;

- o arguido pagar à demandante a indemnização a que foi condenado no montante de

5.500,00 euros;

- o arguido não contactar com a ofendida, presencial e telefonicamente (voz e escrita), mediante vigilância eletrónica, por 6 meses, com aparelhos que funcionem bem, devendo os atuais serem substituídos pela entidade competente.”

A fundamentação da pena mereceu a crítica já referida. E a decisão pede ainda correcção, tanto no que respeita à medida da prisão aplicada, como à opção por pena de substituição.

Apreciando então a medida da pena, o arguido pugna pela redução da prisão para o mínimo legal, que é aqui de dois anos. Dois a cinco anos de prisão é a moldura penal correspondente ao crime cometido.

O mínimo legal apresenta-se manifestamente insuficiente para acautelar, em concreto, as finalidades da punição. A gravidade dos comportamentos mais intensamente lesivos da saúde psíquica da vítima (que se destacaram já), a persistência do padrão de comportamento agressivo ao longo de um período de tempo vasto (cerca de onze anos), evidenciam um grau de ilicitude relativamente elevado, o que, aliado a um dolo directo e constante, se apresenta como incompatível com a “pena mínima”.

Também o consumo do álcool na sua ligação aos factos, a ausência de interiorização do mal do crime, a falta de juízo de auto-censura, a adopção de um comportamento reiterado de perseguição da vítima (não só até ao início do presente processo, como depois durante o inquérito e, por último, já em fase de julgamento), evidenciam exigências de prevenção especial elevadas.

Estas exigências de prevenção especial confluem com as de prevenção geral, dispensando estas últimas grandes justificações. As exigências de prevenção geral mantêm-se há anos elevadíssimas, são elevadíssimas como se retira do grande número de vítimas e de crimes de violência doméstica anualmente praticados em Portugal (cf. Relatório Anual de 2018, Estatísticas da APAV e relatórios anteriores).

No entanto, e mesmo tendo em conta que a Relação não julga de novo e não determina a pena como se inexistisse uma decisão de primeira instância, que a sindicância da decisão de primeira instância pelo tribunal superior “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (cf. Figueiredo Dias, DPP. As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197), mesmo assim ou apesar disso, a ponderação de todas as circunstâncias do caso permite visionar algum excesso de pena na medida de prisão aplicada.

Na verdade, outras circunstâncias convergem aqui reveladoras de que, por um lado, o grau da ilicitude do facto, se bem que elevado como se disse, não é assim tão elevado que leve à aplicação de uma pena de prisão tão próxima do máximo (que é de cinco anos); por outro lado, os quatro anos de prisão ultrapassarão igualmente o grau de culpa do arguido (culpa sempre como limite da pena). Ou seja, o comportamento do arguido consubstancia maus tratos psíquicos, como se disse, e na ponderação sobre a tipicidade (e ilicitude) da conduta entrou já a avaliação da gravidade do comportamento, gravidade que permitiu uma a pronúncia clara sobre a transposição da fronteira do patamar mínimo de punibilidade. Então, situando-nos já dentro do tipo de crime em causa, e não se exigindo a causação de maus tratos físicos mas não ignorando que estes não ocorreram em concreto, não pode deixar de se notar que, no presente caso, a “gravidade global” é compatível com uma redução de pena. O que, aliado à baixa condição social do arguido e ao seu pequeno grau de instrução (que influem de algum modo na atenuação da culpa), leva a determinar como mais justa e proporcional (mas ainda suficiente) a pena de três anos e três meses de prisão.

Já a opção por aplicação de pena de substituição merece tanto as críticas “de forma” enunciadas no parecer, como as críticas “de fundo” evidenciadas no recurso da assistente.

E se bem que o juiz, na sentença, perante qualquer pena de prisão até cinco anos, tenha sempre de justificar acrescidamente ou especialmente a efectividade da prisão, os factos provados revelam que a pena suspensa, mesmo reforçada com as condições impostas na sentença, não garante, no caso, as finalidades da punição.

As exigências de prevenção especial são aqui elevadíssimas, retiram-se de todo o comportamento do arguido persecutório da vítima, das ameaças de morte que verbalizou ao longo do tempo, mesmo após aplicação judicial de medida de proibição de contactos. Também a problemática do alcoolismo, no presente caso, eleva as exigências de prevenção especial e aponta no sentido da insuficiência da substituição da prisão.

A pena suspensa não garante as exigências de prevenção especial, já que, no contexto exposto, não é possível formular juízo de prognose de ressocialização em liberdade, mesmo com sujeição do arguido a tratamento médico, tratamento cujo cumprimento, em liberdade, se apresenta de adesão muito duvidosa (atente-se no longo período de consumo de álcool e na persistência do problema apesar da existência de condenações anteriores relacionadas já com esse consumo).

O tratamento médico ao alcoolismo apresenta-se como altamente aconselhável dada a relação da dependência deste consumo com a prática do crime. E esse tratamento está disponível e pode ser prestado em meio prisional aos reclusos que a ele adiram voluntariamente.

De acordo com as informações obtidas da Direcção Geral dos Serviços Prisionais noutros processos, os estabelecimentos prisionais dispõem de um conjunto de respostas dirigidas às necessidades específicas de reclusos com problemas de dependência de álcool, sendo a abordagem essencialmente de cariz médico e medicamentoso e estando em desenvolvimento programas de cariz cognitivo comportamental que visam a dissuasão do consumo excessivo de álcool.

No presente caso, a pena de prisão (fixada em três anos e três meses) deverá, pois, ser efectiva, e orientada para o tratamento da dependência do álcool, dentro dos limites da (e uma vez confirmada a) voluntariedade do arguido.

(e) Do montante indemnizatório
O arguido recorre em matéria cível argumentando que a indemnização em que foi condenado “considerando os danos provados, também se mostra exagerada e desproporcional”, que “os factos dados como provados referentes ao pedido de indemnização são meramente conclusivos, não assentando em factos concretos” e que “nem os factos manifestam gravidade tal que mereçam uma indemnização de 5.500,00€”.

Mais uma vez cumpre partir da sentença, e justificou-se ali o quantum indemnizatório da forma seguinte:

“Mostram-se preenchidos todos os pressupostos previstos no art. 483° do CC -responsabilidade civil extra-contratual.

O sofrimento, angústia, ansiedade, medo e sentimento de falta de segurança causados pelo demandado na demandante merecem a tutela do Direito - art 496°, n° 1 do CC.

Fixa-se a indemnização em 5.500,00 euros, de acordo com o princípio da equidade e nos termos do disposto no art. 566°, n° 3 do CC.

Termos em que, julgo totalmente procedente por provado o pedido de indemnização civil.”

Verificando-se os pressupostos da responsabilidade civil e estando apenas em causa o valor arbitrado, interessa apenas ajuizar da justeza desse montante, sempre dentro do modelo do recurso-remédio.

E o valor fixado na sentença encontra-se dentro daqueles a que normalmente se tem chegado, pelos fundamentos que nela se elegem como de ponderação relevante, mas atendendo também à situação económica do demandado. Situação económica que não pode ser deixada de fora do processo de ponderação (arts. 496º, nº 4 e 494º do Código Civil) e em que a sentença não revela ter atentado. No entanto, desse atendimento não resulta agora a identificação de erro de decisão (em matéria cível).

O recorrente aufere um rendimento mensal líquido de 1 000€, vivendo em casa da mãe. O que, aliado às demais circunstâncias do caso, particularmente à concreta extensão das consequências sofridas pela assistente (amplamente merecedoras da tutela do direito e num grau patrimonial de tutela como o encontrado), não justifica, sempre no quadro do incontornável referente jurisprudencial, a alteração da quantia arbitrada na sentença.

Tanto mais que os factos provados relativos aos danos, contrariamente ao alegado no recurso, não são “meramente conclusivos”, encontram-se suficientemente concretizados na sentença e de modo a justificar o valor mensurado.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal da Relação de Évora em:

- Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido, reduzindo-se a medida da pena para três anos e três meses de prisão;

- Julgar parcialmente procedente o recurso da assistente, revogando-se a aplicação da pena de substituição, sendo a prisão (de três anos e três meses) efectiva;

- Manter a sentença na parte restante.

Custas cíveis a suportar pelo arguido.

Évora, 10.09.2018

Ana Maria Barata de Brito

António João Latas, com a seguinte declaração de voto:

“Não obstante terem-se-me colocado algumas dúvidas relativamente à revogação da suspensão da pena decidida em primeira instância, subscrevo integralmente o acórdão com a Exma. colega relatora por considerar - como nele melhor se explica - ser muito elevado o risco de o arguido voltar a praticar crimes da mesma natureza, nomeadamente na pessoa da ofendida, o que torna inaceitável aquela suspensão.”